quarta-feira, 5 de junho de 2013

Inconveniência. (Parte 1)


Parado diante da vitrine, Irineu observava os contornos do vestido vermelho que o manequim exibia despretensiosamente. O tom escarlate e as várias nuances de vermelho despertavam lembranças do uniforme secretamente escondido dentro da maleta que segurava com a mão esquerda. Um belo vestido, com certeza. 

A vitrine pouco revelava do interior da loja. Por trás do vidro peças de roupa femininas eram exibidas, e por trás delas o vidro fumê ocultava o ambiente interno. A loja era famosa e frequentada pela alta sociedade, situada num bairro nobre onde residiam políticos, artistas e empresários ricos, e que também abrigava o estúdio de uma emissora de TV de canal fechado onde o Cutelo da Justiça fora convidado para uma breve entrevista num talk show de audiência razoável. 

Há exatos sete dias Irineu ouvira no rádio um pedido para que o Vigilante Vermelho entrasse em contato com a emissora em questão, a princípio não deu atenção, até que lhe ocorreu que esta era uma das alcunhas que havia recebido da mídia. O convite era para ele. Isso o fez refletir por um instante, e no dia seguinte entrou em contato de maneira sigilosa - usando um orelhão de um lugar longínquo - ao que recebeu a proposta de conceder entrevista ao talk show semi-popular do irreverente Wilton Show, o ex-dançarino da banda teen "Me Leva Sensation" que conquistara disco de platina em um passado recente.

Aquilo era novidade para Irineu, o Cutelo da Justiça não era nem de longe um herói muito popular, não era patrocinado por nenhuma grife e não representava nenhum grande time de futebol, também nunca havia sido convidado para protagonizar campanhas publicitárias e mal aparecia nas páginas dos jornais. Era um herói menor, que combatia o crime por conta própria e permanecia longe dos holofotes. No passado havia sido uma grande incógnita, pois lembrava-se de ter surgido numa época em que os super-heróis ainda não existiam, e tinha convicções de ter sido o primeiro. Nessa época seu nome estampava os jornais - ou pelo menos os nomes que os jornais usavam para se referir a ele - e havia grande interesse pela figura. Mas com o tempo outros heróis foram aparecendo, representando corporações, partidos políticos e produtos, e ofuscaram completamente o Cutelo.

No entanto, Irineu encontrou na proposta uma chance de desfazer os mal-entendidos causados pelos jornais, e mostrar ao mundo quem era o Cutelo da Justiça, quais eram suas idéias, suas técnicas de combate, sua linhagem.
E lá estava ele. Não o Cutelo, e sim o homem oculto por trás dele, aquele que permanecia engolido pelas sombras quando o Arauto Escarlate da Justiça era convocado para defender os fracos e oprimidos. Aquele cujos sonhos e ambições foram abandonados por uma vida dedicada à luta por um mundo melhor.
Perdido nos seus sonhos, encarava tolamente o manequim na vitrine, até que, num impulso, entrou na loja e comprou o vestido.